Como fizeram você acreditar que a tentativa de golpe de 8 de janeiro foi articulada por “idosos lunáticos” – e não por poderosos muito bem organizados?

Mauro Cid, Bolsonaro, os ‘patriotas’ e o poder da narrativa

Quem acompanhou as notícias do 8 de janeiro de 2023 se deparou com imagens de pessoas quebrando vidraças, subindo em móveis do Congresso e rezando de joelhos no chão do Planalto. A narrativa inicial, reforçada por muitos canais de comunicação e redes sociais, nos dava a ideia de um movimento desordenado, impulsivo e, sobretudo, popular — como se aquela multidão de camisetas verde-amarelas tivesse agido por puro desespero patriótico. Mas será que foi só isso?

A delação premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, revelou uma engrenagem complexa de planejamento, financiamento e manipulação. Documentos divulgados pelo STF mostram que as movimentações para questionar a legitimidade da urna eletrônica, atacar ministros da Corte e incitar a população começaram meses antes, em reuniões estratégicas e com orientações para criar uma narrativa sobre a “necessidade” de um golpe de Estado. Golpe que escondesse, claro, a participação dos organizadores de alto escalão. Enquanto a massa quebrava vidraças, a elite articulava.

Por que era importante parecer que o desejo por uma ditadura vinha do povo?

Qual é a diferença entre um golpe de Estado e uma “manifestação popular” que clama por intervenção? Mentes autoritárias sabem que é mais difícil condenar um levante que se apresenta como espontâneo. Se a opinião pública e a comunidade internacional enxergassem os atos como um clamor legítimo das ruas, a pressão contra medidas autoritárias diminuiria. Esse foi o cálculo por trás da estratégia: colocar o povo — ou melhor, uma parte dele — como escudo humano. A mobilização diante de quartéis, com orações coletivas e cartazes pedindo intervenção, foi cultivada com cuidado. Grupos no Telegram e WhatsApp orientavam manifestantes a usar palavras-chave como “Deus”, “família” e “liberdade”, gatilhos emocionais capazes de conectar a causa ao íntimo de cada participante. Assim, o que era um movimento arquitetado nas sombras ganhou ares de levante popular.

O recorte demográfico dos idosos

Quem eram os rostos que estampavam as transmissões ao vivo? Mulheres idosas chorando, senhores com bandeiras enroladas no corpo, grupos cantando o hino nacional. Esse retrato não foi obra do acaso. A figura do “avô preocupado” ou da “avó patriota” cria uma barreira emocional: quem se oporia a alguém que só quer “um Brasil melhor”? Lideranças políticas locais — inclusive grupos de empresários bolsonaristas — incentivavam a participação dessa faixa etária, que, não coincidentemente, é a que tem mais tempo disponível para acampar longos períodos nos quartéis, oferecendo transporte gratuito, comida e acolhimento. E havia ainda o elemento simbólico: muitos foram convencidos de que eram protagonistas de uma luta histórica. Na prática, eram peças estratégicas de uma engrenagem que os via mais como ponta de lança do que como agentes políticos.

Massa de manobra: “pode jogar no grupo dos malucos se quiser”

“Grupo dos Malucos” — era assim que os próprios envolvidos na organização do quase golpe chamavam o canal de mensagens liderado por Marcelo Araújo Bormevet, ex-segurança de Jair Bolsonaro e membro da Abin. Conforme investigações da Polícia Federal, essa sala reunia a ala mais radical de manifestantes bolsonaristas e era responsável por disseminar desinformação e ataques a autoridades, como os ministros do STF.

O contraste entre a prisão rápida da base e a blindagem dos articuladores

Centenas de pessoas comuns foram presas logo após o 8 de janeiro, enquanto a apuração sobre empresários e autoridades caminhou a passos lentos. A morosidade não foi apenas jurídica; foi também narrativa. Manter o foco em “malucos” ajudava a emular revolta popular e desviava a atenção de quem realmente conduzia o bastidor do quase golpe.

Braços do financiamento do quase golpe

Quem colocou dinheiro e estrutura nessa engrenagem? A delação de Mauro Cid, aliada a inquéritos da PF, revela que o financiamento do 8 de janeiro foi multifacetado. Empresários bolsonaristas, setores das Forças Armadas, membros da Justiça e das polícias, além de políticos, entrelaçaram-se numa rede de apoio logístico e financeiro. Embora muitos nomes sigam em sigilo, as investigações já apontaram conivência de autoridades locais e aportes milionários. As conexões deixam claro: não se tratava de desorganização, mas de um plano com tentáculos em diferentes esferas de poder.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COMPARTILHE:

Quer mais conteúdo?