A primeira vítima da crise climática é o trabalhador que precisa sair de casa para trabalhar

Por que será preciso repensar o trabalho e as cidades em um planeta emergente

À medida que chuvas extraordinárias e ondas de calor se tornam cada vez mais frequentes, o trajeto diário até o trabalho revela-se um desafio crescente. O cenário expõe uma interseção entre crises ambiental e social, na qual quem depende de ônibus, metrô ou mesmo de trajetos a pé vê seu direito ao transporte e à segurança posto em xeque.

O que um trabalhador enfrenta em dias de chuva intensas, por exemplo?

Trânsito engarrafado, ruas alagadas, transporte público lotado e precarizado: cada um desses fatores prolonga a jornada e, em casos extremos, coloca vidas em risco. Para quem mora longe dos centros urbanos, os efeitos são ainda mais graves — horas a mais de deslocamento podem resultar em atrasos, faltas ao serviço e prejuízos financeiros.

Racismo climático: o que é e como nos afeta

O termo racismo climático ganhou força ao destacar como a crise ambiental aprofunda desigualdades históricas. Conforme explica Ana Sanches, ativista do movimento negro-ambiental e doutoranda pela USP, “a crise climática piora problemas ambientais, sociais e raciais, ampliando desigualdades e formas de discriminação tanto nos impactos quanto na capacidade de resistência das comunidades.” Ela aponta que “o racismo ambiental aparece na divisão dos territórios, definindo onde negros e pobres devem viver — e também o que é ‘trabalho de negro’, como limpeza urbana, reciclagem e serviços de entrega, geralmente mal pagos e realizados em condições precárias.”

Nem só nos grandes centros os trabalhadores são afetados

A crise não atinge apenas as grandes cidades. Trabalhadores do campo, das florestas e das águas, muitas vezes invisibilizados, garantem o abastecimento urbano e também enfrentam desafios climáticos. Em seus relatos, Ana Sanches lembra que “sem o campo plantando, não tem comida na cidade”, e reforça que “é essencial encarar o racismo ambiental e climático como questão de saúde pública, já que o aumento de doenças relacionadas ao clima, como estresse térmico e arboviroses, eleva morbidade e mortalidade.”

Transporte gratuito e moradia próxima: saídas para a crise

Para mitigar os impactos, a ativista defende políticas urbanas que priorizem o transporte público de qualidade e gratuito. Ela afirma que “num cenário de precarização e aumento das passagens, quem depende do transporte para trabalhar ou ter lazer na cidade é o mais prejudicado”, especialmente trabalhadores informais sem direitos garantidos. Além disso, sugere repensar a oferta de moradias mais próximas aos polos de emprego, de modo a reduzir o tempo gasto em deslocamentos e permitir que as pessoas disponham de mais tempo para descanso, convívio familiar e atividades de formação.

O que precisamos?

Especialistas apontam um conjunto de prioridades:

  • Descentralização de postos de trabalho, aproximando vagas de mercados consumidores e residências;
  • Universalização do transporte público gratuito ou com tarifas acessíveis;
  • Expansão e adaptação da malha viária e de transporte coletivo para suportar maiores fluxos;
  • Planos permanentes de contenção de enchentes e ondas de calor;
  • Estratégias contínuas de adaptação climática, para além de respostas emergenciais.


Enquanto isso, gestões públicas que se omitem ou transferem responsabilidades agravam as vulnerabilidades e deixam parte da população desprotegida nos momentos de crise.

Quem é mais afetado?

Estudos como os de Jacinto Santos revelam que ondas de calor atingem de forma desigual a população negra, devido à falta de saneamento básico e à maior exposição a ambientes poluídos. Segundo a bióloga e doutoranda Maíra Rodrigues, “a maioria das cidades possui apenas planos de contenção de desastres, focados em respostas emergenciais, mas faltam planos de adaptação de longo prazo, que preparem e protejam essas comunidades diante das mudanças climáticas.” Isso torna trabalhadores em áreas vulneráveis ainda mais expostos, especialmente mulheres negras chefes de família.

Para ela, “cada município precisa elaborar planos específicos de adaptação, considerando relevo, áreas de risco e características econômicas locais — desde melhorar sistemas de drenagem até planejar moradias seguras e infraestrutura capaz de suportar extremos climáticos.”

Cidade é disputa: quem disputa a nossa?

A urbanista e líder do Centro Brasileiro de Justiça Climática, Andreia Coutinho Louback, observa que “a cidade é um espaço de disputa em que escolhas e necessidades colidem com desigualdades estruturais.” Áreas centrais valorizadas empurram populações de baixa renda para as periferias, aprofundando a lógica colonial da gentrificação. Esse processo não apenas dificulta a mobilidade, mas também aumenta a exposição de trabalhadores a riscos associados a eventos climáticos extremos.

A desigualdade também é de renda

Além das barreiras geográficas, existe uma disparidade salarial que agrava a vulnerabilidade: trabalhadores negros recebem, em média, 60% do salário dos brancos, e quase metade atua na informalidade. Andreia Louback destaca que “agricultores familiares majoritariamente negros enfrentam dificuldades de acesso a crédito e tecnologia, mesmo sendo responsáveis por mais da metade dos estabelecimentos da agricultura familiar.” Quando a crise climática aperta, essas desigualdades se intensificam, pressionando ainda mais quem já está em situação precária.

Do que é feita uma cidade que funciona para todos?

Construir uma cidade resiliente às mudanças climáticas exige infraestrutura adequada, serviços públicos robustos e políticas de inclusão social. Trata-se de garantir não apenas o abastecimento de água, energia e saneamento, mas também transporte eficiente, moradia digna e planos de adaptação permanentes. Somente assim será possível reduzir as desigualdades e proteger os trabalhadores que, diariamente, mantêm a engrenagem urbana em funcionamento.

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