Depois de alguns minutos rolando o feed, você já deve ter visto: um vídeo de receita de arroz e, no primeiro comentário, alguém protesta: “mas eu não gosto de arroz”. Em outro, alguém adverte: “se eu fosse você, apagava isso”. Esse hábito de trazer tudo para o próprio umbigo ganhou até nome lá fora: “what about me effect” — ou, na nossa versão mais bem-humorada, “oxê, e eu?”. As plataformas, que prometiam transformar espectadores em protagonistas, acabaram criando uma cultura onde cada post precisa se encaixar perfeitamente na nossa bolha pessoal — caso contrário, somos compelidos a apontar o dedo e dizer “ei, cadê o meu recorte?”.
Tudo na internet se tornou um POV?
O conceito de “POV” (point of view) explodiu como ferramenta criativa: bastava encarnar o papel de protagonista para gerar identificação e engajamento. Mas a linha entre estratégia narrativa e expectativa autorreferente se perdeu. Hoje, muitos usuários interpretam qualquer conteúdo como se fosse um tutorial exclusivo sobre suas vidas, pressionando criadores a personalizar ao extremo cada legenda, cada joke e cada frame.
O que isso tem a ver com ultrapersonalização algorítmica?
Os algoritmos modernos não se contentam em lembrar o que você já curtiu: eles monitoram cada clique, cada segundo assistido e cada comentário, desenhando um perfil tão granular que sugerem vídeos sob medida para o seu humor, sua localização e até seu “momento de vida”. Quanto mais específicos os temas — do tipo “rotina de quem mora em apartamento conjugado” —, maior o tempo de tela. Quando você encontra um post que foge ao script do seu algoritmo pessoal, a impulsividade de reagir com um “e eu?” vira reflexo condicionado.
O que isso faz com as nossas discussões?
Em vez de avançar no debate, acabamos criando desvios permanentes. Basta um tutorial de arroz para surgir o desvio: “e se eu não tiver arroz?”; “eu prefiro risoto”. Comentários assim interrompem o fluxo de ideias e deslocam o foco para preferências pessoais irrelevantes. Em contextos sérios — reportagens, lives políticas, artigos jornalísticos — essa micro-autocentralização funciona como ruído: o que era conversa sobre direitos ou evidência histórica se converte em sessão de queixas sobre gostos e experiências individuais.
Qual é o risco?
O efeito “oxê, e eu?” pode parecer inofensivo em receitas, mas é tóxico em debates sobre justiça social. Grupos marginalizados usam espaços on-line para denunciar violência, desigualdade e racismo — pautas que exigem atenção coletiva. Quando a discussão é fragmentada por reações egocêntricas, vozes que clamam por mudanças estruturais perdem audiência e relevância. A cultura da reatividade solapa o protagonismo de quem realmente precisa de empatia e apoio.
Às vezes o conteúdo só não é pra você
Viciar-se em enxergar tudo como um ataque pessoal leva à síndrome do micro-ofendido: reagimos emocionalmente a qualquer informação que não se encaixe perfeitamente na nossa vivência. Antes de disparar um comentário “isso não é pra mim”, vale pausar e refletir se o contexto exige adaptação ou simplesmente não foi pensado para você. Nem todo conteúdo é convite à personalização — e nem toda discordância é legítima.
Reatividade ≠ inclusividade
Importante distinguir esse hábito de quem faz reivindicações legítimas de inclusão. Movimentos que demandam visibilidade para grupos silenciados buscam espaços que historicamente lhes foram negados. O “oxê, e eu?” pulveriza justamente essa luta, pois transforma cada plataforma num confessionário do “meu mundinho”, em vez de um fórum de empatia coletiva. A questão não é apagar vozes alheias, mas reconhecer limites entre interesse pessoal e urgência social.