Foi Deus que me deu: a nova onda de influenciadores evangélicos e o evangelho da prosperidade

A onda dos “líderes políticos de Deus”

Você deveria ter muito cuidado com o discurso de “foi Deus que me deu”

Nos últimos anos, a declaração “foi Deus que me deu” deixou de aparecer apenas em para‑brisas de carros populares e camisetas de final de semana. Ela migrou para o feed de influenciadores que exibem apartamentos de cobertura, bolsas Louis Vuitton e viagens internacionais como se o céu tivesse emitido o recibo. Quando essa frase vira legenda de unboxing de luxo, cria‑se a ilusão de que as bênçãos divinas podem ser mensuradas pelo valor de mercado dos bens materiais. O problema não é a fé em si, mas o uso de uma retórica espiritual para legitimar ostentação — e, indiretamente, sugerir que quem não conseguiu o mesmo “milagre” simplesmente não crê o suficiente ou não contribuiu tanto nas ofertas.

O cenário evangélico no Brasil

A expansão evangélica no país não se limita a currais eleitorais ou templos cheios aos domingos. Nos corredores do Congresso, a Frente Parlamentar Evangélica reúne 228 parlamentares — quase 40 % da Câmara e um terço do Senado — e pauta decisões sobre economia, costumes e direitos civis. Fora da política, o crescimento de 61,5 % no número de fiéis em apenas dez anos (16 milhões de novos adeptos) reverbera na mídia, na música e no mercado editorial. Cidades como Manaus ilustram a força desse fenômeno: há mais igrejas mapeadas do que postos de saúde ou escolas públicas, sinalizando um rearranjo de prioridades comunitárias que se reflete diretamente nas redes sociais.

Vai virar trend?

No ambiente on‑line, essa guinada religiosa se traduz em algoritmos abarrotados de devocionais diários, reels de “milagre da manhã” e unboxings de Bíblias com capas fashion. A ascensão de influenciadores que compartilham rotinas de oração, jejum e culto não é mero reflexo de espiritualidade; virou nicho lucrativo de marketing de afiliados, lançamento de planners de fé e pub­li­posts de produtos voltados ao público cristão. Fenômenos como o “Café com Deus Pai”, promovido por Virgínia  Fonseca e esgotado em poucos dias, mostraram às agências que a religiosidade pode gerar engajamento alto e tickets médios robustos — uma combinação perfeita para quem vive de monetização.

Se ama Jesus, poste

A modernização estética das igrejas evangélicas também turbinou esse conteúdo: luzes de show, expressões em inglês (“worship”, “connect”, “purpose”), tatuagens, cabelos coloridos e piercings são agora não apenas tolerados, mas celebrados em muitos cultos. Pastores e fiéis viram hosts de podcasts, vendem cursos de “mentoria espiritual” e bombam no TikTok com coreografias de louvor. Influenciadores pegam carona nessa vibe: contam testemunhos como arcos de personagem, transformam o sofrimento em plot de superação e se posicionam como exemplos de que “permanecer no propósito” rende curtidas, contratos e um lifestyle aspiracional.

Tem um minuto para ouvir o evangelho da prosperidade?

Por trás da maioria dessas narrativas está o evangelho da prosperidade — a doutrina que conecta fé, disciplina meritocrática e autoajuda. A mensagem é simples e potente: “Deus quer te ver rico; plante suas sementes (tempo e dinheiro) e a colheita virá.” Num país com histórico de desigualdade e mobilidade social limitada, essa fórmula exerce sedução imediata. Ela desloca debates estruturais — sobre salário mínimo, tributação ou acesso a educação — para o terreno das escolhas individuais e da espiritualidade, tornando‑se um atalho teológico para justificar sucesso (ou fracasso) financeiro.

Foi Deus que me deu!

A retórica prosperidade‑ostentação se reforça quando influenciadores exibem carros importados e closets abarrotados enquanto a maior parte da audiência — classes C e D, cristã e dependente de programas sociais — luta para pagar boletos. Essa vitrine dourada cria uma hierarquia invisível: de um lado, os “abençoados”; do outro, os que, supostamente, ainda não oraram ou ofertaram o bastante para merecer a chuva de milagres. O contraste entre luxo e necessidade cotidiana vira combustível para reproduzir a crença de que a fé é passaporte para ascender, mascarando a realidade de privilégios de origem ou práticas de monetização agressivas.

Foi Deus que te deu ou você conseguiu enganando seguidores?

A indagação que ecoa nas redes não é teológica, mas ética: esse patrimônio veio do altar ou do algoritmo? Louvar a providência divina enquanto se lucra com rifas suspeitas, apostas on‑line ou parcerias turvas mistura a santidade da fé com a opacidade dos negócios digitais. Quando a narrativa espiritual encobre heranças familiares, isenções fiscais ou contratos milionários de publicidade, a desigualdade se disfarça de bênção. E qualquer crítica vira “ataque ao ungido”, blindando os influenciadores de responsabilização pública.

E você com isso?

A fé tem papel legítimo de acolhimento e comunidade, mas, nas mãos de criadores de conteúdo, pode se converter em mecanismo de controle social e capital simbólico. Ao consumir stories que vendem prosperidade como prova de favor divino, é importante perguntar: quem ganha com essa mensagem? Quais estruturas permanecem intactas enquanto se celebra o “milagre” individual? Num cenário em que templos superam escolas e postos de saúde, o que está em jogo não é só a timeline — é o modelo de sociedade que normaliza a associação entre riqueza e virtude espiritual.

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